Autor:
Cristiane Bitencourt DiasDoutora em Nefrologia pela USP. Médica Preceptora da Residência de Clínica Médica do Hospital dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo. Médica Nefrologista do Hospital Samaritano.
Última revisão: 10/10/2009
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INTRODUÇÃO
O lúpus eritematoso
sistêmico (LES) é uma doença autoimune caracterizada pela produção de vários
autoanticorpos, incluindo anticorpos para antígenos nucleares (FAN), contra DNA,
histonas e ribonucleoproteínas (RNP). O Colégio Americano de Reumatologia criou
critérios para o diagnóstico de LES, conforme demonstrado na Tabela 1.
Tabela 1: Critérios
para o diagnóstico de LES pelo Colégio Americano de
Reumatologia.
Presença
de 4 ou mais critérios para o diagnóstico. Sensibilidade e especificidade de
96%
|
Rash
malar
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Rash
discoide
|
Fotosensibilidade
|
Úlceras
orais
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Artrite
não erosiva
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Pleuropericardite
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Doença
renal (proteinúria e/ou hematúria)
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Alterações
neurológicas (convulsões ou psicoses)
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Alterações
hematológicas (anemia hemolítica, leucopenia/linfopenia,
trombocitopenia)
|
Célula
LE positiva, anti-DNA, anti-Sm, VRDL falso positivo
|
Fator antinuclear (FAN) positivo
|
O envolvimento
renal, com o propósito de atender aos critérios acima, é definido pela presença
de proteinúria persistente acima de 500 mg/dia e/ou pela presença de hematúria
e/ou leucocitúria e/ou cilindros celulares no sedimento urinário, desde que
outras causas de alterações na urinálise estejam afastadas (infecções urinárias,
efeito de drogas etc.).
Ocasionalmente,
alguns pacientes, no início da doença, não preenchem os critérios clínicos e
sorológicos para o diagnóstico de LES e já se apresentam com quadro renal
sugestivo de nefropatia lúpica.
A presença de doença
renal é o preditor mais importante de morbidade e mortalidade em pacientes com
LES. O curso clínico do LES, passando por atividades e remissões, requer uso de
corticoides por longo período, além de outras drogas
imunossupressoras.
EPIDEMIOLOGIA
O LES acomete
preferencialmente mulheres, com pico de incidência entre 15 e 40 anos de idade,
com um possível predomínio da doença nos afro-descendentes. O envolvimento renal
é comum no LES, com doença renal clinicamente evidente ocorrendo em 50% dos
casos. A literatura reforça que a nefrite lúpica aparece entre 6 e 36 meses após
o diagnóstico de LES, não sendo rara, entretanto, a nefrite lúpica ser a
manifestação inicial de LES. Em dados de biópsia renal do Registro Paulista de
Glomerulopatias, a nefrite lúpica correspondeu a 66,2% das causas de
glomerulopatias secundárias.
PATOGÊNESE
A patogênese está
relacionada à formação de complexo imunes, compostos principalmente de
anticorpos contra DNA, nucleossomas, cromatina, C1q, laminina, Sm, La (SS-B), Ro
(SS-A), ubiquitina e ribossomos. Esses complexos imunes se depositam em mesângio
e em espaço subendotelial, promovendo a ativação da cascata de complemento e
influxo de neutrófilos e monócitos. Histologicamente, essas mudanças podem
expressar uma proliferação mesangial ou uma proliferação mais intensa focal ou
difusa. Clinicamente, este processo inflamatório traduz-se pela presença de
sedimento urinário rico (hematúria, leucocitúria, cilindrúria e proteinúria) e
graus variados de declínio da filtração glomerular. Podem ocorrer também
depósitos de complexos imunes em região subepitelial, havendo ativação da
cascata de complemento, porém, sem o influxo de células inflamatórias. Esse
depósito se manifesta clinicamente por proteinuria nefrótica e histologicamente
por nefropatia membranosa.
CLASSIFICAÇÃO DA NEFRITE LÚPICA
O diagnóstico
histológico do tipo de nefrite lúpica requer a realização de exame de
microscopia óptica e imunofluorescência. Mais recentemente, a microscopia
eletrônica foi incorporada como método adicional para o diagnóstico de lesões
glomerulares. Os achados esperados na imunofluorescência de uma nefrite lúpica
são de depósitos de vários tipos de imunoglobulinas (IgG, IgM, IgA), além de
complemento (C3, C4 E C1q).
A nefrite lúpica
pode ser classificada em:
1.
Classe I: nefrite
lúpica com mínima alteração mesangial, caracterizada pela presença de complexos
imunes no mesângio, detectáveis pelo exame de imunofluorescência ou microscopia
eletrônica. A microscopia óptica é normal e não há alterações no exame de urina
ou função renal.
2.
Classe II: nefrite
lúpica proliferativa mesangial, caracterizada por hipercelularidade mesangial ou
expansão da matriz mesangial. Clinicamente, manifesta-se por hematúria e/ou
proteinúria microscópica. O prognóstico é bom e nenhuma terapia específica é
recomendada, a não ser que ocorra evolução para doença mais avançada.
3.
Classe III: nefrite
lúpica proliferativa focal, caracterizada por proliferação endocapilar e
extracapilar acometendo menos de 50% dos glomérulos à microscopia óptica, sendo
usualmente associada a depósitos subendoteliais. Alterações mesangiais podem
estar presentes. Crescentes glomerulares e necrose fibrinoide podem ocorrer.
Clinicamente, apresenta-se por hematúria, proteinúria (geralmente não nefrótica)
e/ou alteração de função renal.
4.
Classe IV: nefrite
lúpica proliferativa difusa, na qual as lesões histológicas são semelhantes às
da classe III, porém com acometimento de mais de 50% dos glomérulos. É a forma
mais grave de nefrite lúpica. Clinicamente, apresenta-se como hematúria,
proteinúria (podendo estar chegar a valores nefróticos) e insuficiência
renal.
5.
Classe V: nefrite
lúpica membranosa, que se apresenta com espessamento da membrana basal
glomerular, além de alterações mesangiais. Esse espessamento ocorre em função da
presença de depósitos subepiteliais. Essa forma de nefrite corresponde a
aproximadamente 20% dos casos de nefrite lúpica e sua expressão clínica é a de
síndrome nefrótica. Quando adequadamente tratada, apresenta sobrevida renal ao
redor de 90% dos casos.
6.
Classe VI: nefrite
lúpica com esclerose avançada, caracterizada por esclerose global de mais de 90%
dos glomérulos. São pacientes com lesões crônicas cicatriciais que receberam
tratamento conservador de doença renal crônica, sendo a indicação de tratamento
imunossupressor apenas em função do acometimento de outros órgãos.
A transformação
entre as classes histológicas pode ocorrer tanto de classes mais graves para as
menos graves (em resposta a terapêutica instituída), como no sentido inverso,
sobretudo em situações de recidivas ou tratamento inadequado.
MANISFESTAÇÕES CLÍNICAS
Os pacientes com as
formas mais leves de nefrite lúpica (classes I e II) costumam apresentar
sedimento urinário pouco ativo e a proteinúria, quando presente, é inferior a 1
g/dia. É comum encontrar títulos elevados de anti-DNA e
hipocomplementemia.
Pacientes com
histologia de classe III apresentam hematúria e cilindros hemáticos em 50% dos
casos, com proteinúria nefrótica em 30%; hipertensão arterial é pouco frequente
e as provas sorológicas para lúpus geralmente estão positivas.
Já os pacientes com
classe IV apresentam alterações de sedimento urinário mais frequentes e mais
exuberantes que as demais classes, com síndrome nefrótica em mais da metade dos
casos. Insuficiência renal moderada também é comum, e evolução com rápida perda
de função pode ocorrer em 20% dos casos.
Na classe V, a
manifestação é de síndrome nefrótica geralmente com função renal normal, podendo
haver casos de comprometimento de função renal que sugerem um componente
proliferativo junto com a histologia de membranosa.
TESTES IMUNOLÓGICOS NA NEFRITE LÚPICA
O FAN possui
sensibilidade de 90% para o diagnóstico de lúpus e especificidade de 70%. É
importante lembrar que este exame pode ser positivo em diversas outras situações
clínicas, como em outras doenças reumatológicas, neoplasias, infecções etc. O
anti-DNA está presente em até 90% das nefrites lúpicas não tratadas. O anti-Sm é
um exame muito específico para LES, porém só é positivo em 25% dos casos. A
hipocomplementemia é um bom marcador de atividade da doença, sendo usada tanto
no diagnóstico, como no acompanhamento de recidivas e avaliação de efeito de
tratamento. Em até 50% dos casos da forma membranosa de nefrite lúpica, não há
detecção de autoanticorpos à época do diagnóstico. Além disso, não é raro, nesta
forma da lesão, que os critérios diagnósticos do Colégio Americano de
Reumatologia não sejam preenchidos à apresentação inicial.
INDICAÇÃO DE BIÓPSIA RENAL EM NEFRITE LÚPICA
A biópsia renal deve
ser feita no paciente com LES quando houver sedimento urinário rico (hematúria,
leucocitúria e cilindrúria), proteinúria e/ou perda de função renal, pois a
terapêutica depende da classificação histológica. Entretanto, a biópsia renal
não deve atrasar o tratamento, como nos casos de nefrite lúpica proliferativa
(classe III ou IV), cuja clínica de perda de função renal e urina com sedimento
ativo é muito característica. Nesta situação, deve-se iniciar o tratamento
independentemente do momento da realização da biópsia renal. Além do diagnóstico
do tipo de nefrite, a biópsia renal também permite avaliar o grau de
comprometimento túbulo-intersticial e vascular do rim.
DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
Podemos dividir os
diagnósticos diferencias em dois grupos:
1.
Doença renal sem
manifestações clínicas: deve-se fazer diagnóstico diferencial com qualquer
glomerulopatia primária, porém sempre suspeitar de nefrite lúpica em mulheres
jovens e com outras doenças autoimunes associadas.
2.
Doença renal com
manifestações sistêmicas: os diagnósticos diferenciais incluem crioglobulinemia,
vasculites relacionadas a ANCA, neoplasias e infecções.
TRATAMENTO
As nefrites lúpicas
classes I e II são de bom prognóstico e não necessitam de terapêutica
específica, a não ser que progridam para classes mais graves.
As lesões de classe
III ou IV, ou qualquer forma que apresentar declínio de função renal ou
crescentes celulares à histologia renal, devem ser tratadas com imunossupressão
rígida de duração aproximada de 24 meses. O esquema clássico proposto para esses
casos é o do National Institute of Health (NIH):
1.
Prednisona 1
mg/kg/dia por 8 semanas, sendo diminuído progressivamente e mantido em dose de 5
a 10 mg/dia por pelo menos 5 anos sem nenhuma atividade imunológica e se a lesão
renal não tiver sido muito grave. Se o quadro inicial se manifestar com uma
glomerulonefrite rapidamente progressiva, sugere-se pulsoterapia com
metilprednisolona 8 mg/kg/dia por 3 dias, seguido da dose de corticoide de 1
mg/kg/dia por 8 semanas.
2.
Pulsos mensais de
ciclofosfamida 500 a 1.000 mg/m2 endovenosa, num total de 6 pulsos (6
meses), seguidos de outros dois pulsos agora com intervalo de 2 meses do 6º
pulso e entre eles, seguindo-se outros três últimos pulsos, agora com intervalo
de 3 meses entre o 8º pulso e entre eles.
3.
Em formas de
apresentação clínica não tão grave e sem muita repercussão sistêmica do lúpus é
possível após os 6 primeiros pulsos manter o paciente com azatioprina 2
mg/kg/dia ou micofenolato, em média 1.500 mg/dia divididos em duas tomadas, até
completar 18 meses.
A nefrite lúpica
classe V tem sua terapêutica ainda sem consenso. Entretanto, a maioria dos
autores optam por tratamento com prednisona 1 mg/kg/dia por 8 semanas sendo
diminuído progressivamente e mantido em dose de 5 a 10 mg/dia por pelo menos 5
anos sem nenhuma atividade imunológica, associado a azatioprina ou micofenolato
por 6 meses. Como dito anteriormente, é considerada uma forma histológica de
evolução benigna, com sobrevida renal de 90%.
COMPLICAÇÕES DO TRATAMENTO
Corticoide
Suas complicações
são estéticas, com alterações de pele e fácies cushingoide, além de propensão a
infecções e alterações ósseas (necrose asséptica de cabeça de fêmur e
osteoporose secundária). Esta última complicação pode ser minimizada com o uso
associado de cálcio 1.200 mg e vitamina D2 800 UI/dia. São importantes também as
alterações metabólicas associadas ao uso crônico de corticoide, como ganho de
peso, dislipidemias e indução e agravamento de diabetes melito e hipertensão
arterial.
Ciclofosfamida
Tem efeitos
colaterais agudos de náuseas, vômitos e cistite hemorrágica, que podem ser
minimizados com uso de antieméticos e hidratação adequada. Seus efeitos
colaterais a médio e longo prazos são: risco de infecções (incluindo-se
infecções sistêmicas graves e septicemia), insuficiência gonadal, podendo levar
à esterilidade e, mais raramente, neoplasias.
Azatioprina
Pode provocar
depressão de medula óssea com anemia, leucopenia e plaquetopenia, também pode
provocar hepatotoxicidade. Aumenta a suscetibilidade a infecções.
Micofenolato
Também é depressor
de medula óssea, e agudamente pode provocar diarreias importantes que melhoram
com a diminuição da dose ou a suspensão do remédio. Como as outras drogas
imunossupressoras, associa-se a um risco aumentado de infecções comuns, assim
como de formas mais graves e sepse.
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